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VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM

 

Quando vi a expressão latina pela primeira vez, num excerto de um julgado, indaguei a mim mesmo: O que significa: “Venire Contra Factum Proprium, Supressio, Surrectio e Tu Quoque.”

 

Descobri que esta expressão tem raiz etimológica do Direito alemão “treu und glauben” (significando: “lealdade” e “confiança”).

 

A partir daí, portanto, não se teve a presunção, nem veleidade de fazer um estudo abrangente, até mesmo porque as informações aqui contidas foram reunidas de diversas fontes de doutrinadores nacionais e estrangeiros, os quais cito ao final nas referências.

 

Continuando, “Venire Contra Factum Proprium, Supressio, Surrectio e Tu Quoque”, é um brocardo latino que significa “vir contra seus próprios atos” [1], insere a idéia de que "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos".

 

As expressões supressio”, surrectio” e tu quoque”, não se traduzindo literalmente, equivalente a “verwirkung” na doutrina alemã, e consiste na supressão, numa relação jurídica, de determinadas obrigações, pelo decurso do tempo.

 

Socorremo-nos do didático e excelente estudo de Nelson Nery Jr. E Rosa Maria de Andrade Nery[3] explicam que “ocorre a perda da possibilidade de fazer valer um direito, em virtude da decorrência do tempo (...) ou do comportamento do titular desse direito contrário à boa-fé objetiva, vale dizer, perda por ofensa ao CC 422[2]”. Segundo os autores, pode-se dizer a “suppressio”; tem o mesmo entendimento de renúncia tácita do nosso Direito.

 

O “surrectio, equivalente na doutrina alemã  verwirkung”, entende-se como o inverso da supressio “Nelson Rosenvald[4], “é o exercício continuado de uma situação jurídica em contradição ao que foi convencionado ou ao ordenamento jurídico, de modo a implicar nova fonte de direito subjetivo, estabilizando-se para o futuro”.

 

Continuando: leciona Nelson Nery Jr. E Rosa Maria de Andrade Nery, op cit nas referências: “É a vantagem advinda da incidência da suppressio”, que se caracteriza como “liberação de possibilidade de ação ou de recuperação da liberdade de ação”, sendo admissível para a constituição de situações mais vantajosas para aquele a quem aproveita, mas, “para que o beneficiário adquira posição jurídica mais vantajosa – aquisição de direito ou liberação de prestação –, deve estar presente a boa fé objetiva e subjetiva”.

 

As expressões latinas “Tu quoque”, significando “e tu também”, significa na lição de Nelson Nery Jr. E Rosa Maria de Andrade Nery “inconsistência ou incoerência do comportamento da parte, que viola a boa-fé objetiva”, ou seja, contendo a idéia de contradição e incoerência da parte nos seus atos.

 

Assim pode-se dizer que a boa-fé processual, cfe art. 5º do Código de Ritos[3], veda um comportamento contraditório no processo, o que dá-se o nome, em latim, de proibição de “venire contra factum proprium”.

 

Em aplicação hipotética os autores abaixo descritos, “é quando uma parte recorre de uma decisão judicial após ter praticado um ato que demonstrava a sua conformidade e aceitação, ainda que tácita”[4].

 

Vale lembrar aqui à guisa de ilustração para entendimento da doutrina na proteção da boa fé processual: "proibição do comportamento contraditório aplica-se, inclusive, ao magistrado, quando cria na parte a legítima expectativa de que suas razões serão apreciadas" (v. STJ, AgInt no REsp 1698734/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/06/2018, DJe 11/06/2018).(g/n)

 

Outro exemplo da aplicação do princípio da boa-fé objetiva encontra-se  nas relações contratuais. Código Civil artigo 422 que estabelece: "contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé".

 

A maior parte da doutrina é consentânea em afirmar que a boa fé objetiva é na verdade “um comportamento que deve ser fundado na confiança, lealdade, ética e probidade, entre as partes, e que autoriza que o poder judicante (inclusive aqui nos casos extrajudicial) a repreender a conduta a ser adotada partes de um contrato, sempre que houver um desacordo/conflito entre os mesmos”.

 

Por derradeiro, nos casos de contratos alguns doutrinadores concluem que na falta da boa fé "enseja, também, a caracterização de inadimplemento mesmo quando não haja mora ou inadimplemento absoluto do contrato. É o que a doutrina moderna denomina violação positiva da obrigação ou do contrato. Desse modo, quando o contratante deixa de cumprir alguns deveres anexos, por exemplo, esse comportamento ofende a boa-fé objetiva e, por isso, caracteriza inadimplemento contratual."1

 

O Direito Brasileiro adotou os institutos do venire contra factum proprium (Teoria dos Atos Próprios), supressio, surrectio e tu quoque, devem ser empregados como função integrativa, suprindo lacunas do contrato e trazendo deveres implícitos as partes contratuais2. Assim,  proibição de venire contra factum proprium, impede que uma das partes do contrato contrarie/contradiga o seu próprio comportamento, depois de ter produzido, em outra pessoa, uma expectativa.

 

É o caso do credor que concordou, durante a execução do contrato de prestação periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, e desta forma não poderá exigir do devedor o cumprimento de cláusula do contrato (eis que já concordou outrora de outra forma!),  em razão da vedação do venire contra factum proprium.

 

Obrigatório dizer que a “supressio” ocorre quando uma determinada obrigação (direito) não é exercitado durante um determinado lapso temporal, ocorrendo sua supressão ou perda desse direito não podendo ser mais vindicado ou aplicado ao contrato.  Perdeu!! (não é preclusão).

 

Destaca-se que um direito não vindicado ou desempenhado durante determinado lapso temporal, por inatividade da parte, encontra supedâneo no Princípio da boa-fé objetiva, na perda de sua eficácia, i.e., não podendo mais ser exercitado.5

 

A “ supressio, consiste em um "retardamento desleal no exercício do direito, que, caso exercitado, geraria uma situação de desequilíbrio inadmissível entre as partes, pois a abstenção na realização do negócio cria na contraparte a representação de que esse direito não mais será atuado", na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald .6

 

Citando doutrina esclarecedora de Anderson Scheiber [12], considera-se  como pressupostos para a existência do “venire contra factum proprium”. São eles:

(a) Comportamento inicial (“factum proprium”);

(b) Confiança de outrem na conservação do comportamento inicial;

(c) Comportamento posterior e contraditório; e

(d) Dano ou, no mínimo, potencial de dano pela contradição

 

Obrigatório dizer que “venire contra factum proprium”, em sua literalidade, não se inclui como positivado no ordenamento jurídico brasileiro, mas tem sido aceito pela doutrina e jurisprudência, em sua essência, como se encontra, p.ex. , no artigo  330 do Código Civil, (...)“o pagamento reiteradamente feito em outro local faz presumir renúncia do credor relativamente ao previsto no contrato”.

Na jurisprudência, o STJ reconheceu no julgamento ocorrido em 14/10/1996, do Recurso Especial nº 95.539 - SP (1996/0030416-5), de relatoria do Ministro Ruy Rosado de Aguiar: “(...) O direito moderno não compactua com o venire contra factum proprium, que se traduz como o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da Boa-fé no Direito Civil, II/742). Havendo real contradição entre dois comportamentos, significando o segundo quebra injustificada da confiança gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte, não é admissível dar eficácia à conduta posterior.”

(STJ, RESP nº 95539-SP, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 03/09/1996, publicado no DJ em 14/10/1996)

 

Doutrinadores deram também como exemplo, a aplicação do “venire contra factum próprio”, o v. o acórdão dos Embargos de Declaração no Recurso Especial nº 1.143.216 – RS, julgados em 09/08/2010, de relatoria do Ministro Luiz Fux:“(...) Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara (excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium. (...)”

(STJ, 1ª seção, EDcl no Resp nº 1.143.216 - RS, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 09/08/2010, publicado no DJe em 25/08/2010)

 

Este princípio aqui comentado à guisa de informação, também tem sido aplicado em outras áreas do direito, além do civil, no Direito Administrativo, no Direito Tributário e Financeiro, na aplicação da Administração Pública não se atendo aqui a comentar sobre outras aplicações desde princípio singular, baseado na “lealdade” e “confiança” que devem pautar as relações jurídicas nas suas diversas ramificações.

FONTES E REFERÊNCIAS:

 [1] A boa-fé pode ser objetiva ou subjetiva. A boa-fé objetiva é a cláusula geral de boa-fé do art. 422 do Código Civil, é norma jurídica, a concepção ética da boa-fé. A boa-fé subjetiva é a concepção psicológica de boa-fé, que se baseia numa crença ou numa ignorância (ex: art. 1.242 do Código Civil, do qual se extrai que a boa-fé “ad usucapionem” é a crença do possuidor de que ele seja o titular legítimo da propriedade).

[2] Alcemara Carmem Borges Marques Melo, no artigo “A boa-fé objetiva e os efeitos da supressio e surrectio nos contratos cíveis”, disponível em <http://goo.gl/EhB4hG>. Acesso em 22/10/15.

Código Civil Comentado. 13. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 642-643.

[4] Citado por Alcemara Carmem Borges Marques Melo no artigo “A boa-fé objetiva e os efeitos da supressio e surrectio nos contratos cíveis”, disponível em <http://goo.gl/EhB4hG>. Acesso em 22/10/15.

[5] Citado por Danilo Cruz em “tu quoque uma variante do Princípio da Boa-Fé Objetiva - Parte II”, disponível em <http://goo.gl/19xdXR>. Acesso em 22/10/15.

Código Civil Comentado. 13. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 643.

[7] Consideração feita pela Desembargadora no julgamento da Apelação Cível nº 1.0024.05.863126-8/001, no TJ/MG (14ª Câmara Cível, data de julgamento: 14/11/2007, data de publicação: 04/12/2007).

[8] Citados por Danilo Cruz em “tu quoque uma variante do Princípio da Boa-Fé Objetiva - Parte II”, disponível em <http://goo.gl/19xdXR>. Acesso em 22/10/15.

Código Civil Comentado. 13. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 641.

[10] Ana Ferreira Quesada, no artigo eletrônico “Venire contra factum proprium e a boa-fé objetiva: por um exame sistemático”, p. 17, disponível em <http://goo.gl/hKI7OH>. Acesso em 22/10/15.

Código Civil Comentado. 13. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 642.

[12] SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.

[13] AYRES, Beatriz Flores; RODRIGUES, Mariana Andrade. E-civitas Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas. Políticas e Gerenciais do UNI-BH. Belo Horizonte. Vol. III, n. 1, jul-2010, p. 17-18. ISSN: 1984-2716. Disponível em: <http://revistas.unibh.br/index.php/dcjpg/article/viewFile/85/48>. Acesso em 22/10/2015. - Renata Valera advogada Sites: - http://renatavalera.jusbrasil.com.br

 

 



[1] WIKIPÉDIA - Venire contra factum proprium, ou nemo potest venire contra factum proprium, é um brocardo latino que significa "vir contra seus próprios atos", "ninguém pode comportar-se contra seus próprios atos". É um princípio base do Direito Civil e do Direito Internacional, que veda comportamentos contraditórios de uma pessoa.Seu fundamento se encontra nos princípios da boa-fé e da força cogente dos contratos (pacta sunt servanda).

[2] CC – 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[3] CPC - Art. 5º Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

[4] CPC, art. 1.000, parágrafo único) A parte que aceitar expressa ou tacitamente a decisão não poderá recorrer. Parágrafo único. Considera-se aceitação tácita a prática, sem nenhuma reserva, de ato incompatível com a vontade de recorrer.

 

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